Jacarépaguá : A Jornada no Vale dos Jacarés
A Milenar Jornada do Vale dos Jacarés: História, Geografia e o Legado dos Engenhos na Zona Oeste
No coração da Zona Oeste, estende-se um vasto e populoso território que hoje abriga uma comunidade que se aproxima de um milhão de habitantes, superando em número muitas capitais brasileiras. Esta região, cercada pelos imponentes Maciços da Pedra Branca e da Tijuca, representa uma área de contrastes marcantes, onde o crescimento imobiliário acelerado e a vida moderna se entrelaçam com um passado colonial profundo, que a transforma em um verdadeiro museu a céu aberto.
O nome desta localidade, de sonoridade intrigante e origem antiga, deriva da língua Tupi-Guarani: "Lagoa rasa dos Jacarés". Essa denominação reflete a geografia primitiva da Baixada, um extenso planalto costeiro pontuado por formações lacustres e uma rica vida selvagem.
As Raízes Indígenas e a Baixada dos Engenhos
Muito antes das carruagens, dos Barões e dos modernos condomínios, este platô era o lar de uma antiga povoação indígena. As bases de assentamentos coloniais posteriores foram erguidas sobre a área que os nativos chamavam de Taquarussu Tiba. O nome taquara, que significa bambu, era central para a identidade local, pois a planta era abundante na região e essencial para os povos originários, sendo usada na confecção de utensílios, para atividades de caça e pesca, e até mesmo na criação de instrumentos musicais e em rituais.
A ocupação portuguesa, no entanto, redefiniu drasticamente a paisagem e a economia. Esta região era inicialmente conhecida como a Baixada dos Onze Engenhos, um indicativo claro de sua importância monumental para o ciclo da cana-de-açúcar no século XVII.
A fundação do domínio territorial remonta ao final do século XVI, especificamente a uma petição feita em 1594, que resultou na formação de uma gigantesca concessão de terras, ou sesmaria. A área abrangida era colossal. Estendia-se desde o litoral, onde hoje se encontra a Barra da Tijuca e o Joá, seguia até o Recreio dos Bandeirantes, alcançando vastas áreas de Guaratiba, e penetrava a mata adentro. O território era tão extenso que incluía bairros atuais e chegava a cortar partes consideráveis dos maciços, como o da Pedra Branca e trechos do Maciço da Tijuca.
Inicialmente, a atividade econômica era focada no Engenho Velho, uma das primeiras unidades de produção de cana. No entanto, o crescimento da produção e a necessidade de aumentar o plantio da cana-de-açúcar levaram à criação de outras unidades na Baixada, como o Engenho Novo, o que confirma a primazia desta região na economia colonial do país.
O Legado do Ouro Verde e o Comércio Fluvial
Embora a cana-de-açúcar tenha sido o motor inicial, a economia do vale diversificou-se. Engenhos de farinha e de mandioca, além de monjolos para socar milho, eram comuns. Contudo, o grande auge de riqueza veio com o ciclo do café, o "ouro verde" do Segundo Império.
As fazendas da Baixada transformaram-se em centros de produção e, notavelmente, em pontos de armazenamento. O café era cultivado em vastas plantações locais e, frequentemente, era comprado de sitiantes vizinhos, sendo armazenado em grandes tulhas antes de seguir para a Corte.
O transporte dessa riqueza dependia da infraestrutura da época, que era rudimentar por terra, mas eficiente por água. O escoamento do café dependia da navegação pelos rios da região, como o Rio Grande. Naquele tempo, o Rio Grande era navegável, e as mercadorias desciam por ele até o centro da cidade. Essa rede fluvial era vital, uma vez que as estradas eram de péssima qualidade, muitas vezes lamacentas, exigindo que os viajantes viessem a cavalo ou, em períodos de chuva, em carruagens.
A dificuldade das vias terrestres é historicamente marcada. Em uma das capelas históricas da região, havia um objeto na entrada onde os paroquianos raspavam a lama de seus calçados, dando origem à expressão popular, que perdura até hoje, referente a pessoas de condição humilde que vinham do interior.
O Museu a Céu Aberto: Fé e Arquitetura
O atual desenvolvimento imobiliário e a intensa movimentação de veículos (um dos principais motivos de reclamação dos atuais moradores) contrastam com a riqueza preservada de seu acervo histórico. A região é, de fato, um vasto museu a céu aberto, abrigando relíquias monumentais do período colonial.
Entre os tesouros mais valiosos estão as igrejas que datam do século XVII, como a Igreja de Nossa Senhora do Loreto e a Igreja de Nossa Senhora da Pena.
A história da Igreja da Pena, por exemplo, está envolta em uma lenda popular que remonta ao Brasil Colônia: conta-se que um escravo, com medo de ser açoitado por seu senhor após perder cavalos, veio até o alto do maciço para rezar e pedir ajuda a Nossa Senhora. Segundo a narrativa, ele teria visto uma imagem divina que apontava para um local específico, onde os animais foram encontrados. O senhor do escravo, testemunhando o milagre, teria mandado erguer a igreja (datada de 1661) e concedido a alforria ao escravo, um registro notável de libertação no Brasil.
Além das igrejas, a arquitetura colonial permanece viva em diversos pontos, especialmente nos remanescentes das grandes fazendas. Um desses conjuntos, que serviu como Engenho Novo, operou até 1910, e suas ruínas hoje, em terras que pertencem ao governo federal, guardam a triste memória da escravidão. No local, ainda se pode ver o que restou das senzalas, estruturas que abrigavam os escravos, e partes do aqueduto que fornecia água ao engenho. A preservação desses sítios é fundamental para resgatar o período que engloba o Brasil Colônia e o Brasil Império.
A Conexão com a Realeza
A relevância da Baixada no cenário imperial é inegável, dado o alto status de seus proprietários, muitos dos quais eram nobres e amigos íntimos da Família Real.
Um dos solares mais antigos da região, parte do Engenho Velho da Taquara, teve o privilégio de hospedar a própria Família Imperial em 1843, durante o Segundo Império. O Imperador Dom Pedro II, ainda jovem, e suas irmãs, as Princesas Francisca e Januária, passaram quase três meses ali. A permanência do monarca em uma sede de fazenda, vivendo e despachando seus afazeres oficiais, é considerada um evento raro na história imperial, transformando o local em uma espécie de Paço Imperial temporário dentro do território do bairro.
Esses laços com a Corte garantiam que o comércio de café fluísse diretamente para o consumo da capital, e a região se mantinha como um polo de prestígio social e econômico. A vida social era intensa, com frequentes bailes, batizados e saraus na Casa Grande, refletindo o convívio da elite que se dedicava aos negócios do café e da terra.
O Presente e o Futuro da Memória
Hoje, a localidade enfrenta desafios inerentes a uma área de crescimento acelerado. Embora o comércio seja farto e a área ainda conserve o verde, elemento apreciado pelos moradores, o trânsito intenso e o aumento da frota de ônibus e carros são motivos de preocupação diária, resultado direto do forte desenvolvimento imobiliário.
Contudo, a história local – com suas fazendas, engenhos, aquedutos, senzalas e solares que datam de quase 400 anos – representa um pedaço vital da memória nacional. Há uma urgência na sociedade para que esses locais sejam não apenas preservados, mas restaurados e ativamente utilizados.
A transformação desses remanescentes históricos em grandes centros culturais, museus ou teatros é vista como o ideal para a população. Dessa forma, não só os moradores locais, mas também os cidadãos de toda a capital e do país, teriam acesso a um polo de turismo histórico-cultural, onde é possível revisitar a complexa e fascinante jornada da região desde os tempos pré-coloniais até o Império. A conservação deste patrimônio monumental garante que as novas gerações tenham a oportunidade de entender o passado para melhor construir o futuro do Vale dos Jacarés.

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